sexta-feira, 20 de abril de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 20/04/2012

Bernardo Tomé*        

Os papéis a dormir no chão e eu a sentir que lá estiveram uma eternidade. Marcam apontamentos de outrora e eu sei que lhes pertenço. Estão todos empilhados aleatoriamente. Papeis que são uma geração contínua de acontecimentos. Desde a porta do meu lugar até à saída do espaço de outros.
        Mas é o meu quarto. Tudo indica que é mesmo o meu lugar.
        Nas paredes escorrega um som que houvera existido desde sempre. A ária de cadência harmoniosa relembra-me romances acontecidos. E eu recordo. Recordo as pegadas que simbolizaram o meu crescimento. É nítido porque são as mesmas. As pegadas. As marcas simbólicas da minha juventude.
        E eu que cresci.
        Eu que me faço velho com o medo de envergonhar a criança que fui.
        Eu que me torno velho e sonho com os dias que foram o inicio de mim.
        Queria ter um caderno de infância. Algo que me fizesse recordar a inocência e quem sabe saboreá-la. Um registo de tudo o que pensava de mim. Algo que me salvasse do futuro.
       
        Mas se o que aí vem for aquilo que sonhei? Não pode ser. O que nos vai acontecendo nunca é igual ao que sonhámos.

        Eu sonhei com uma mão a abraçar o trigo e o teu corpo.
        Mas isso nunca aconteceu. Nunca foi nos teus olhos que vi reflectidos os campos de trigo.
        No entanto, vejo uma foice e um martelo. E vejo o vermelho. Escritores russos. Revoluções. Vejo revoluções nos teus olhos. São nítidos os teus horizontes longínquos, repletos de ideais. São bonitos os teus ideais. Tu és bonita.
       
        Mas outra vez a minha velhice misturada com a adolescência constante. Uma perdição de conteúdos amorosos. A minha perdição amorosa por ti. Eu quero-te. Tu és bonita e tudo se mistura na essência que quero ver em ti.

        As minhas paredes. A ária de cadência harmoniosa. Tu. As minhas pegadas que sonharam o caminho até ti e nunca chegou. O encontro que nunca se deu porque sempre estiveste longe e eu perto demais.
        Quero pertencer-te.
        Ainda vamos a tempo de abraçar o trigo e quem sabe, talvez eu encontre os campos de trigo no segredo dos teus olhos.

*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

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