terça-feira, 10 de abril de 2012

Crónica Semanal das Terças-feiras - Daniel Veloso 10/04/2012 / "Também há vida nas redondezas"

Daniel Veloso*
 Também há vida nas redondezas

A periferia é habitualmente olhada com desprezo e hostilidade pela maioria, vislumbrada como um mar de decadência e crime, violência e virulência. Os bairros suburbanos são responsabilizados pelo desabrochar de uma panóplia de flagelos sociais, desde o tráfico à prostituição, passando pelo consumo de droga ou vandalismo. Os seus habitantes, gente pobre e precarizada, são concebidos como escumalha, invariáveis bandidos sedentos por instalar a confusão, o perigo, o terror. Gente incapaz de contribuir para o progresso social, preguiçosos irresponsáveis, inimigos do trabalho.
Estratégia antiga de um sistema ignóbil, estes preconceitos são construídos e socialmente assimilados, como que por um processo de “osmose”. Tal estratégia, montada para perpetuar o isolamento dos suburbanos, tem um objectivo central: dividir para reinar. Mas a realidade, afigurando-se como juíz hegemónico, contraria categoricamente aqueles estigmas, e os subúrbios exigem mostrar de que são feitos. Aqui também há seres pensantes, seres dinâmicos e esforçados, com muito para ensinar. O Kova M Festival, realizado durante a última semana, é disso prova irrefutável. Na Cova da Moura, um bairro “problemático” localizado às portas de Lisboa, os habitantes, unidos, ergueram um admirável evento, pleno de actividades culturais e desportivas, palco de uma irrepreensível dinâmica. Num bairro cuja população é de origem maioritariamente africana, as culturas cabo-verdiana, angolana e guineense estiveram soberbamente representadas, quer através das danças e das músicas, quer auxiliados pelo artesanato e gastronomia. Tendas montadas, convívio intenso, cachupa no prato, arrisca-se um pézinho de dança. Kuduro, kizomba e funaná correm no sangue, e vários grupos do bairro sobem ao palco, montado no ringue da bola. Grupos de incansáveis jovens, rapazes e raparigas, donos de um ritmo inalcançável e de uma incessante energia, mas também conjuntos de veteranos, incapazes de ignorar os seus genes, dançando e tocando, divertindo e apaixonando. As Batuque Finka Pé são disso exemplo: um grupo de senhoras percussionistas, que encantam também com os seus extrovertidos movimentos, com a sua inexaurível boa disposição.
Porém, a vitalidade dos suburbanos não se esgota aqui, e os moradores da Cova fizeram mais: a grande influência do Rap nos jovens do bairro, e a multiplicidade de MC’s aqui presentes, proporcionou a organização de uma série de concertos de hip-hop, todos eles gratuitos. Com uma mensagem indissociável da repressão e desigualdade de que são alvo na periferia, os MC’s vociferam palavras de ordem e hinos imortalizados, incendiando a bem composta plateia. Desde as mais recentes promessas da Cova – que já conservam o rap nas veias e artérias -, até aos mais antigos MC’s do bairro, como LBC, Cash Money Paka, Hezbollah ou Thugz, há ainda tempo para Souljah, um reconhecido grupo de Rap da Cova, afamado em todo o meio do hip-hop suburbano. Homenagens aos companheiros injustamente desaparecidos (materializadas na canção “Pa nha Rapaz”, um clássico do bairro), revolta contra a prepotência policial, solidariedade entre “tropas”, denúncia das evidentes iniquidades. Todos os temas cabem nos poemas daqueles que vivem o mais duro quotidiano. O intercâmbio musical abre ainda espaço para a passagem de Chullage ou Halloween, outros dois rappers da periferia, sempre prontos para lutar contra a segregação e a exploração.
O Kova M Festival foi território de enriquecimento cultural, território de permuta de experiências de vida, de sentimentos e opiniões, preferências e especificidades. Foi palco de uma autêntica festa popular, gratuita e acolhedora, estimulante e moralizadora. Todo o bairro participou, todo o bairro ajudou. Mas o Kova M Festival foi ainda uma lição para muitos “iluminados” que se julgam donos da verdade. Uma lição de honestidade e simplicidade, de tranquilidade e união, de fraternidade e companheirismo, de trabalho e esforço colectivo. Uma lição de vida dada pelos mais pobres. Por aqueles que, com pouco, são capazes de fazer muito. O Moinho da Juventude está de parabéns, a Cova da Moura está de parabéns. Todos, juntos, calam as repudiantes vozes que os acusam de parasitagem. Porque aqui há vida, há cultura, há reflexão, há acção. Os factos falam por si, e o mote está dado. Esqueçam-se os preconceitos. “Bem passa ku nós”. 

* Estudante de Ciências da Comunicação na FCSH-UNL. O Autor escreve pontualmente no Blog da A.I.J.

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