sexta-feira, 6 de abril de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 6/04/2012

Bernardo Tomé*

Estou por casa e daqui já não saio há algum tempo. Tempo indeterminado porque vou sempre adiante e não sei a linha temporal que o conta. Tempo vazio, não o conto nem quantifico. Tempo inventado para a organização, que não preciso, porque a arrumação mental que tento fazer já não faz sentido.
        No sono da minha cama vou acordando. Demoro algum tempo a ver noticiários que me sujeitam a uma lavagem cerebral e a acreditar que o capitalismo vai prevalecer. Perco mais espaço com os olhos que avistam ali tão perto, no ecrã, anúncios que limitam o pensamento e manipulam para o consumo.
        Desço por umas escadas que me livram do barulho do mundo e já piso o chão frio que me queima os pés gelados de sono. O pijama colorido faz de conta que ainda é fim-de-semana e tranquiliza-me. Sento-me a comer. Acabo por beber mais do que a fome permite e termino no duche, a demorar as horas.
        Com a toalha a indicar que a sujidade já se fora embora de mim, indico o caminho para a rua não antes de vestir um qualquer trapo que fascina a minha alma comunista.
        Desço a escadaria do prédio e a clarabóia lá do alto promete sol e calor. Mas engano meu. O sol agrada ao meu corpo, mas o frio faz-se notar com a aragem matinal.
        Os passos são forçados a andar. No braço, ou debaixo dele, entrego a minha sorte ao Bertrand Russel. Trago em mim (porque já o lera antes) a Conquista da Felicidade e entre linhas, Nenhum Olhar do Peixoto. Pareço um literário. Não sou.
        Refugio-me do frio, no quiosque do velho e da velha. Faz frio na mesma, mas agora tenho a companhia de um senhor que todas as manhãs faz a delícia das notícias. Conta o dia de ontem e faz promessas para o amanhã. Gosto de o ouvir, gosto dos bons dias que me dá. Gosto de guardar o que ouço.
        O trabalho é perto. Não tenho de dar muitos passos até lá, mas no caminho curto eu e a vontade já nos perdemos.
        Atendo os telefones. Ligo a desconhecidos. Preparo relatórios de vendas. Brinco com canetas. Roubo madeira aos lápis. Mastigo tampas e desmonto lapiseiras. O meu emprego é fascinante na sua insignificância. Não sou feliz.
        O superior hierárquico chama o meu nome, trocado, porque nunca dei pelo nome Martim, nunca fui burguês, nunca tive posses, nunca votei outra cor que não o vermelho. Mas ainda assim, respondo à chamada. Subo o elevador a pé. São muitos os degraus, mais do que poderia contar.
        - Andas a trabalhar pouco Martim. Passas o dia na conversa, a telefonar a não sei quem, a gastar o dinheiro que eu ando a acumular, a deixar-me na penúria e um pouco menos rico. Afinal de contas, que andas a fazer?
        Baixo a cabeça e pergunto-me se não seria melhor perder as estribeiras e colocar todo o conhecimento de economia que acumulo em mim, ou até mostrar-lhe que sou um proletário, que sou um dos que Karl Marx chamou à atenção, um trabalhador honesto que chama à vida qualquer coisa como trabalho, loucura, insanidade. Fico calado. Mais uma vez não me expresso. Nunca o soube fazer.
        - Sabes que estás num sitio competitivo, que não trabalhas tu e haverá alguém a corroer a corda que te sustém. És inútil para mim porque com um dedo no gatilho coloco um rato no teu lugar. O mundo é a competição, eu sou o organizador e tu o competidor, por isso, cabe a ti o lugar em disputa. Daí ter de forçar, de te pedir, cuidadosamente, para entrares em competição ou abandonares. Não quero reclamações ou falta de esforço. Quero os melhores, prontos para tudo, prontos para ter amor à camisola. Decide. Ou corres por mim, ou corro eu contigo.
        Desisti. Com a palma da mão coloquei um adeus escrito. Sem falar, saí da sala de troféus.
        A gritaria era imensa. O sussurro dos colegas de trabalho ensurdecia os espectadores. Mas eu não parei. Continuei até à rua.
        Lá fora, a esperar por mim, estava uma revolução por fazer. Debaixo do céu baunilha estava um amor por encontrar. Entre os prédios que se abraçavam, estava um futuro enternecedor para mim. No Universo, havia agora um destino por escrever, o meu e de quem me quisesse acompanhar. No horizonte, a glória percorria os meus antepassados e tudo aquilo que ansiava.
Na finitude de mim, soube sem sequer o imaginar, que era o começo de uma nova vida.
        
*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

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