sexta-feira, 13 de abril de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 13/04/2012

Bernardo Tomé*

Na rua da minha avó já não existem crianças. Não faço ideia para onde possam ter ido. Antes de hoje, aquela rua sem saída era um estádio, um recreio, um campo de futebol. Muitas crianças a esconderem-se de uma contagem que era sempre mentirosa, a serem apanhadas por baixo de carros, escondidos. Miúdos que nunca adivinharam que seriam crescidos e cheios de responsabilidades. Meninas sentadas no muro, a verem os rapazes já adolescentes a remexerem nas suas motas descarnadas e habilidosas. Não sei onde estão essas crianças hoje.
            Hoje vim almoçar a casa da minha avó e antes de entrar, fiquei a olhar para o inicio e para o fim da rua. Cada vez mais carros estacionados, em várias filas, quase em cima uns dos outros, belos esconderijos se eu ainda fosse menino. No inicio da rua, já não está a esquadra da GNR, onde eu e o resto do bando nos perdíamos, agachados por baixo da janela da sala dos interrogatórios, a ouvir os larápios a jurarem inocência, a chorarem de medo dos cassetetes e das páginas amarelas nas mãos. Eu e o resto do bando, em apostas sem dinheiro, apostas de brinquedos, a tentarmos profetizar a resposta rude dos agentes da autoridade. Grandes diálogos incriminatórios sobre motorizadas roubadas, autorrádios arrancados a dente, senhoras de idade roubadas por puxão. Na rua da minha avó os ladrões roubavam sem armas, eram bandidos de banda desenhada. A rua que não é a mesma desde que fechei os olhos para ser adulto.
            Durante o almoço, com o resto da família, não liberto o silencio para contar que penso nestas coisas, tenho receio que não compreendam a minha angustia, a minha nostalgia perante este futuro em que estamos. A minha avó anda de um lado para o outro, com o tabuleiro da comida, a dizer que tem mais se quisermos. A minha avó que desde sempre nunca se senta à mesa connosco, anda por ali, de chinelos a sair do dedo, como que descalça, longe do centro das atenções, a fazer-se notar apenas nas palavras: toma filho, há aqui mais.
          Saboreio o prato que mais detesto desde miúdo: jardineira. Brinco com as ervilhas e recordo as tardes de verão na rua da minha avó, o resto do bando em tronco nu a secar no alcatrão. Jogos de futebol, balizas com duas pedras da calçada à distancia de um passo. Uma bola a saltar por cima de carros, de gatos. Uma bola a deslizar por baixo de carros, de gatos. E eu com o resto do bando, a não querer saber das meninas que olhavam para os adolescentes das motas. Eu, pouco envergonhado no meu infame estado físico, magro, magro, escanzelado, sem fome, só ossos a saírem da pele. Preocupava-me apenas ser jogador de alcatrão e inaugurar o marcador, mesmo que tivesse de arranhar o corpo por baixo dos carros, mesmo com óleo nos dedos, nas costas.
         A minha avó a voar na cozinha: toma filho, há aqui mais.
       E toda a família a falar de boca cheia, a salvaguardar o futuro dos mais novos, a discutir o estado da nação, a percorrerem lugares comuns da política internacional, a serem de esquerda e de direita, conversas, blá blá blá. No canto da mesa enorme, eu e as ervilhas tínhamos um passado de segredos. Eu, as ervilhas e a jardineira com um passado terrível de ódio. Mas o meu prato a ficar vazio, enquanto molho o pão no molho e volto de novo para aqueles verões na rua da minha avó. Tardes inteiras de suor e aquela espera incessante que o calor abrandasse com a chegada do senhor dos gelados. Descia a rua de mota, carregado de gelados de todo o género. Descia a rua com uma música que lembro mas que não sei tocar. Parava perto da criançada e a correria e os empurrões logo. Um calipo de morango, ou melhor, dois, a sede é muita e o primeiro é só para enganar. E o velho, com um capacete forrado nas entrelinhas com um padrão axadrezado: 50 escudos e vai dar o troco aos teus pais. Demorávamos muito pouco tempo a degustar o gelado, no meu caso, a ansia de chegar à parte final do calipo, na parte do sumo, em que deslizava para dentro da minha boca sedenta de doce, morango na maior parte das vezes. Outras, talvez sabor a coca-cola e muito de vez em quando, limão. Num ano, recordo que um sabor exótico também me tentou: pina colada. Mas não pegou.
            A minha família fala muito durante as refeições e despacha o serviço rapidamente. Deixaram-me sozinho à mesa. Eu deixo-me estar sentado, a ver a minha avó ligeiramente despenteada, cabelo curto, a arrumar a loiça. Olho para ela e não consigo imaginá-la nova. Assim, da minha idade, ou mais nova ainda. Sei que também ela já foi jovem, mas nunca tive a ousadia de lhe perguntar sobre a juventude. Temo que as pessoas mais velhas não gostem de falar desse tempo que passou. Bem vejo, quando a minha avó olha para as poucas fotografias que tem por casa, a preto e branco. No olhar da minha avó, uma fininha saudade que gera um choro interior, talvez uma ultima suplica para que o tempo a deixe ser novamente uma menina, com os sonhos próprios de quem cresce entre bonecas mas que a realidade levou cedo demais para os trabalhos no campo. No olhar da minha avó estão campos imensos de outras crianças mais, a queimarem a inocência, como uma fogueira de fogo e cinza. Por isso não lhe pergunto nada. Vejo-a entre a loiça e respeito o silencio do seu cabelo despenteado, curto.
            Despeço-me da minha avó: até amanhã vó. E ela não responde. É a forma simpática que tem de ser fiel à história. Nunca se despede, no entanto, diz adeus quando encontra alguém na rua. É a minha avó.
            O sol esbate solene à entrada da porta. O quintal-horta da minha avó tem segredos que só ela conhece. Um labirinto de flora que só ela sabe percorrer. Nem em criança tive o atrevimento de entrar. Aquele sempre foi o santuário da minha avó. Respeito.
            Atrevo-me a descer a rua até ao fim. Para ver se está tudo igual. Continuo sem ver crianças a entrarem e a saírem das portas. Muitos carros empilhados, algumas velhas toda metidas dentro da sua cusquice, na janelas, a obrigarem os olhos a seguirem passos em falso, a terem apontamentos de memoria para guardarem relatos completos sobre o que a rua conta. E eu a descer a rua, a ter cada vez mais certeza de que os tempo mudam. São duas da tarde e nem um sinal de uma bola, nem o riso oriundo de uma criança. Uma rua de adultos que trabalham, que funcionam ao ritmo do mundo. Uma rua que vai perdendo o encanto, tal como tantas outras ruas.
            Não escondo a tristeza que me invade e subo novamente a rua. Caminho com olhos no chão, assustado por ter crescido. Assustado por imaginar o tempo em que fui criança.
            Ao encontrar o fim da rua, olho para trás uma última vez. Lá ao fundo, uma pilha de carros estacionados e uma brutalidade silenciosa de passado.
            Vou andando devagar, pés pequenos, um à frente, outro atrás. E um pequeno sorriso dentro de mim a acreditar em coisas: no meio do silencio que a rua hoje tem, talvez seja um jogo, as crianças estão novamente a jogar às escondidas. Uns debaixo dos carros, outros nas varandas, outros por trás da nespereira. E as meninas, talvez tenham conseguido boleia dos adolescentes e estejam montadas nas motas, maravilhadas com a beleza da marginal. E no fim do dia, talvez apareçam todos, quando ouvirem a música do senhor dos gelados, com o capacete forrado nas entrelinhas com um padrão axadrezado, desçam a rua até ao fim e desfrutem do resto do dia e aí, tenho a esperança de que a rua volta novamente a ter o encanto e a ternura da infância que deixei para trás.

*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

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