domingo, 22 de abril de 2012

Crónica de Francisco da Silva - 22/04/2012 / Interesseiros não interessam

Francisco da Silva*
Interesseiros não interessam
Quando somos jovens, tudo para nós se resume ao nosso grupo de amigos. Mais do que a família, são eles que estão connosco a maior parte do tempo exercendo uma certa influência sobre a maneira como nos comportamos, vestimos, falamos... Os amigos estão lá para nós e nós estamos lá para eles. Há um espírito de ajuda e de camaradagem que nos leva a preferi-los em detrimento dos demais, uma espécie de retribuição por tudo aquilo que eles nos dão.
Quando crescemos continuamos a ter amigos. Provavelmente menos porque o tempo e as vivências vão-nos ajudando a separar o trigo do joio e formamos assim o nosso núcleo duro.
Os amigos fazem parte da nossa vida e é óbvio que depositamos mais confiança neles do que em pessoas que não conhecemos de lado algum, até aqui nada de errado.
A questão que quero discutir com vocês, esta semana, é na minha opinião demasiado importante para ficar de fora do debate político: Há lugar para nomeações de amigos na política?
A política foi desde cedo a minha paixão e com a inocência que é característica nos jovens sempre pensei que dentro do nosso espectro ideológico remavam todos para o mesmo lado. Também achava que dentro do nosso próprio partido estava tudo empenhado em levar os projectos para a frente. Cedo fui descobrindo que a política é um mundo onde quem é amigo hoje, amanhã está a tentar arrasar contigo. Claro que há excepções: conheci muita gente que faz parte do meu núcleo duro, pessoas cuja amizade prezo e estimo e todos esses fazem esquecer as desilusões e enganos.
Fiz amigos também do outro lado da barricada: adversários cujo respeito, lealdade e honestidade na defesa dos seus ideais levaram a que uma boa relação se desenvolvesse.
Com tudo isto vai-se crescendo e aprendendo bastante. Aprendi que respeitar as amizades é não as atravessar na política. Não deixar que escolhas que dependam de ti sejam feitas com base em sentimentos de afinidade pessoal porque costuma dar mau resultado. Vi também muitas amizades destruídas e transformarem-se em ódios de estimação. Falo-vos nesta perspectiva porque a nível ético todos temos noção de que não é correcto e temos visto muitos casos de corrupção que partem desta lógica do “ajudar o amigo” que por vezes parece desculpável. Não só não é correcto para com os cidadãos, como não é algo que acabe por beneficiar os nossos amigos, pelo contrário. Se são nossos amigos é em troca de valores que não são materiais.
Se nos pedem favores, exigem cargos, negócios, benefícios profissionais e demais benesses são interesseiros que nos deixarão de lado assim que não lhes formos úteis. Misturar amigos com política é mau para os cidadãos, para nós e para eles. É uma má política.

*  O autor escreve às Quartas-feiras no Blog da Associação Iniciativa Jovem. Esta crónica refere-se ao texto da Quarta-feira passada que não pode ser publicado.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 20/04/2012

Bernardo Tomé*        

Os papéis a dormir no chão e eu a sentir que lá estiveram uma eternidade. Marcam apontamentos de outrora e eu sei que lhes pertenço. Estão todos empilhados aleatoriamente. Papeis que são uma geração contínua de acontecimentos. Desde a porta do meu lugar até à saída do espaço de outros.
        Mas é o meu quarto. Tudo indica que é mesmo o meu lugar.
        Nas paredes escorrega um som que houvera existido desde sempre. A ária de cadência harmoniosa relembra-me romances acontecidos. E eu recordo. Recordo as pegadas que simbolizaram o meu crescimento. É nítido porque são as mesmas. As pegadas. As marcas simbólicas da minha juventude.
        E eu que cresci.
        Eu que me faço velho com o medo de envergonhar a criança que fui.
        Eu que me torno velho e sonho com os dias que foram o inicio de mim.
        Queria ter um caderno de infância. Algo que me fizesse recordar a inocência e quem sabe saboreá-la. Um registo de tudo o que pensava de mim. Algo que me salvasse do futuro.
       
        Mas se o que aí vem for aquilo que sonhei? Não pode ser. O que nos vai acontecendo nunca é igual ao que sonhámos.

        Eu sonhei com uma mão a abraçar o trigo e o teu corpo.
        Mas isso nunca aconteceu. Nunca foi nos teus olhos que vi reflectidos os campos de trigo.
        No entanto, vejo uma foice e um martelo. E vejo o vermelho. Escritores russos. Revoluções. Vejo revoluções nos teus olhos. São nítidos os teus horizontes longínquos, repletos de ideais. São bonitos os teus ideais. Tu és bonita.
       
        Mas outra vez a minha velhice misturada com a adolescência constante. Uma perdição de conteúdos amorosos. A minha perdição amorosa por ti. Eu quero-te. Tu és bonita e tudo se mistura na essência que quero ver em ti.

        As minhas paredes. A ária de cadência harmoniosa. Tu. As minhas pegadas que sonharam o caminho até ti e nunca chegou. O encontro que nunca se deu porque sempre estiveste longe e eu perto demais.
        Quero pertencer-te.
        Ainda vamos a tempo de abraçar o trigo e quem sabe, talvez eu encontre os campos de trigo no segredo dos teus olhos.

*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

domingo, 15 de abril de 2012

3ª EDIÇÃO - TORNEIO DE FUTSAL 25 DE ABRIL DA A.I.J

21 e 22 de Abril de 2012  
Faculdade de Motricidade Humana – CRUZ QUEBRADA

DESPORTO É UM DIREITO DE TODOS!

- 16 Equipas
- Faze de Grupos
- Prémios (1º lugar)
- Máximo 10 Jogadores
- Taças e Medalhas (1º, 2º e 3º lugares)

- Preço inscrição
* 15€ Equipas maioritariamente sócias
*20€ Equipas não sócias

INSCRIÇÕES ATÉ 15 DE ABRIL 2012

Horário de realização do Torneio (Versão Final):

21 DE ABRIL DE 2012: 
11h00 às 13h00 – Inicio da Fase de Grupos
13h00 às 14h00 – ALMOÇO CONVÍVIO – CHURRASCADA
14H00 às 18h00 – Continuação da Fase de Grupos 

22 DE ABRIL de 2012:
14h00 às 19h00 – Quartos-de-final, meias-finais, 3º e 4º lugar e final

*Está disponível durante todo o torneio serviço de Bar a preços acessíveis.

CONTACTOS: - 
- 926854208 & 913858029

- Solicita a ficha de inscrição aqui: projectoiniciativajovem@gmail.com



- Evento no facebook: http://www.facebook.com/events/238621339570149/

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 13/04/2012

Bernardo Tomé*

Na rua da minha avó já não existem crianças. Não faço ideia para onde possam ter ido. Antes de hoje, aquela rua sem saída era um estádio, um recreio, um campo de futebol. Muitas crianças a esconderem-se de uma contagem que era sempre mentirosa, a serem apanhadas por baixo de carros, escondidos. Miúdos que nunca adivinharam que seriam crescidos e cheios de responsabilidades. Meninas sentadas no muro, a verem os rapazes já adolescentes a remexerem nas suas motas descarnadas e habilidosas. Não sei onde estão essas crianças hoje.
            Hoje vim almoçar a casa da minha avó e antes de entrar, fiquei a olhar para o inicio e para o fim da rua. Cada vez mais carros estacionados, em várias filas, quase em cima uns dos outros, belos esconderijos se eu ainda fosse menino. No inicio da rua, já não está a esquadra da GNR, onde eu e o resto do bando nos perdíamos, agachados por baixo da janela da sala dos interrogatórios, a ouvir os larápios a jurarem inocência, a chorarem de medo dos cassetetes e das páginas amarelas nas mãos. Eu e o resto do bando, em apostas sem dinheiro, apostas de brinquedos, a tentarmos profetizar a resposta rude dos agentes da autoridade. Grandes diálogos incriminatórios sobre motorizadas roubadas, autorrádios arrancados a dente, senhoras de idade roubadas por puxão. Na rua da minha avó os ladrões roubavam sem armas, eram bandidos de banda desenhada. A rua que não é a mesma desde que fechei os olhos para ser adulto.
            Durante o almoço, com o resto da família, não liberto o silencio para contar que penso nestas coisas, tenho receio que não compreendam a minha angustia, a minha nostalgia perante este futuro em que estamos. A minha avó anda de um lado para o outro, com o tabuleiro da comida, a dizer que tem mais se quisermos. A minha avó que desde sempre nunca se senta à mesa connosco, anda por ali, de chinelos a sair do dedo, como que descalça, longe do centro das atenções, a fazer-se notar apenas nas palavras: toma filho, há aqui mais.
          Saboreio o prato que mais detesto desde miúdo: jardineira. Brinco com as ervilhas e recordo as tardes de verão na rua da minha avó, o resto do bando em tronco nu a secar no alcatrão. Jogos de futebol, balizas com duas pedras da calçada à distancia de um passo. Uma bola a saltar por cima de carros, de gatos. Uma bola a deslizar por baixo de carros, de gatos. E eu com o resto do bando, a não querer saber das meninas que olhavam para os adolescentes das motas. Eu, pouco envergonhado no meu infame estado físico, magro, magro, escanzelado, sem fome, só ossos a saírem da pele. Preocupava-me apenas ser jogador de alcatrão e inaugurar o marcador, mesmo que tivesse de arranhar o corpo por baixo dos carros, mesmo com óleo nos dedos, nas costas.
         A minha avó a voar na cozinha: toma filho, há aqui mais.
       E toda a família a falar de boca cheia, a salvaguardar o futuro dos mais novos, a discutir o estado da nação, a percorrerem lugares comuns da política internacional, a serem de esquerda e de direita, conversas, blá blá blá. No canto da mesa enorme, eu e as ervilhas tínhamos um passado de segredos. Eu, as ervilhas e a jardineira com um passado terrível de ódio. Mas o meu prato a ficar vazio, enquanto molho o pão no molho e volto de novo para aqueles verões na rua da minha avó. Tardes inteiras de suor e aquela espera incessante que o calor abrandasse com a chegada do senhor dos gelados. Descia a rua de mota, carregado de gelados de todo o género. Descia a rua com uma música que lembro mas que não sei tocar. Parava perto da criançada e a correria e os empurrões logo. Um calipo de morango, ou melhor, dois, a sede é muita e o primeiro é só para enganar. E o velho, com um capacete forrado nas entrelinhas com um padrão axadrezado: 50 escudos e vai dar o troco aos teus pais. Demorávamos muito pouco tempo a degustar o gelado, no meu caso, a ansia de chegar à parte final do calipo, na parte do sumo, em que deslizava para dentro da minha boca sedenta de doce, morango na maior parte das vezes. Outras, talvez sabor a coca-cola e muito de vez em quando, limão. Num ano, recordo que um sabor exótico também me tentou: pina colada. Mas não pegou.
            A minha família fala muito durante as refeições e despacha o serviço rapidamente. Deixaram-me sozinho à mesa. Eu deixo-me estar sentado, a ver a minha avó ligeiramente despenteada, cabelo curto, a arrumar a loiça. Olho para ela e não consigo imaginá-la nova. Assim, da minha idade, ou mais nova ainda. Sei que também ela já foi jovem, mas nunca tive a ousadia de lhe perguntar sobre a juventude. Temo que as pessoas mais velhas não gostem de falar desse tempo que passou. Bem vejo, quando a minha avó olha para as poucas fotografias que tem por casa, a preto e branco. No olhar da minha avó, uma fininha saudade que gera um choro interior, talvez uma ultima suplica para que o tempo a deixe ser novamente uma menina, com os sonhos próprios de quem cresce entre bonecas mas que a realidade levou cedo demais para os trabalhos no campo. No olhar da minha avó estão campos imensos de outras crianças mais, a queimarem a inocência, como uma fogueira de fogo e cinza. Por isso não lhe pergunto nada. Vejo-a entre a loiça e respeito o silencio do seu cabelo despenteado, curto.
            Despeço-me da minha avó: até amanhã vó. E ela não responde. É a forma simpática que tem de ser fiel à história. Nunca se despede, no entanto, diz adeus quando encontra alguém na rua. É a minha avó.
            O sol esbate solene à entrada da porta. O quintal-horta da minha avó tem segredos que só ela conhece. Um labirinto de flora que só ela sabe percorrer. Nem em criança tive o atrevimento de entrar. Aquele sempre foi o santuário da minha avó. Respeito.
            Atrevo-me a descer a rua até ao fim. Para ver se está tudo igual. Continuo sem ver crianças a entrarem e a saírem das portas. Muitos carros empilhados, algumas velhas toda metidas dentro da sua cusquice, na janelas, a obrigarem os olhos a seguirem passos em falso, a terem apontamentos de memoria para guardarem relatos completos sobre o que a rua conta. E eu a descer a rua, a ter cada vez mais certeza de que os tempo mudam. São duas da tarde e nem um sinal de uma bola, nem o riso oriundo de uma criança. Uma rua de adultos que trabalham, que funcionam ao ritmo do mundo. Uma rua que vai perdendo o encanto, tal como tantas outras ruas.
            Não escondo a tristeza que me invade e subo novamente a rua. Caminho com olhos no chão, assustado por ter crescido. Assustado por imaginar o tempo em que fui criança.
            Ao encontrar o fim da rua, olho para trás uma última vez. Lá ao fundo, uma pilha de carros estacionados e uma brutalidade silenciosa de passado.
            Vou andando devagar, pés pequenos, um à frente, outro atrás. E um pequeno sorriso dentro de mim a acreditar em coisas: no meio do silencio que a rua hoje tem, talvez seja um jogo, as crianças estão novamente a jogar às escondidas. Uns debaixo dos carros, outros nas varandas, outros por trás da nespereira. E as meninas, talvez tenham conseguido boleia dos adolescentes e estejam montadas nas motas, maravilhadas com a beleza da marginal. E no fim do dia, talvez apareçam todos, quando ouvirem a música do senhor dos gelados, com o capacete forrado nas entrelinhas com um padrão axadrezado, desçam a rua até ao fim e desfrutem do resto do dia e aí, tenho a esperança de que a rua volta novamente a ter o encanto e a ternura da infância que deixei para trás.

*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Crónica de Francisco da Silva (Todas as Quartas-feiras) - 11/03/2012 / Vamos Equipa!

Francisco da Silva*
Vamos Equipa!


 Um dos temas que mais mobiliza os jovens é sem dúvida o desporto.
Desde miúdos que aprendemos a relacionarmo-nos com os outros através de um jogo de futebol, vólei, basquete... tudo aquilo que se chamam desportos de equipa.
É através do desporto de equipa que vamos percebendo que o mundo não somos só nós e que precisamos de interagir uns com os outros de modo a atingir um resultado comum.
Entretanto com o passar dos anos vamos sendo ensinados nas escolas que o desempenho individual é o mais importante. Tens de ser o melhor porque só o melhor sobrevive.
Somos assim encaminhados para uma postura de vida totalmente contrária ao que fomos aprendendo na prática: que juntos somos mais fortes.
Vivemos numa sociedade de “one man show” onde há uma vedeta e os restantes, normalmente a maioria, são esquecidos.
Um bom exemplo é o da liga espanhola de futebol. O duelo principal não é entre duas equipas de 25 jogadores onde todos têm o seu lugar e são importantes. O foco da atenção é nos duelos Mourinho vs. Guardiola ou Ronaldo vs. Messi. Esquecidos ficam os outros 99% apesar de todos termos a noção de que sem eles não havia Real Madrid vs. Barcelona.
Não é difícil encontrar entrevistas tanto de treinadores como de jogadores de sucesso que quando questionados qual o segredo do seu desempenho referirem o trabalho de equipa, o ser-se equipa e a busca colectiva de um objectivo comum. Por outro lado, também há diversos exemplos que uma equipa composta por jogadores de qualidade irrefutável, pode não chegar a lado nenhum. O Manchester City é um bom exemplo dessa realidade tal como o Chelsea.
Do mesmo modo, o resultado de uma sociedade virada para o individualismo e para o poder do 1% que beneficia do trabalho dos restantes 99% está à vista.
Estamos com níveis históricos de desemprego, as condições de vida baixaram, o poder de compra então nem se fala. A nossa equipa composta por todos os portugueses que são indiscutivelmente pessoas de valor não está a cumprir o objectivo de superar a crise económica.
As medidas tomadas por este governo são o equivalente a todos correrem o triplo para que o 1% lá do topo possa beneficiar desse esforço. O que está a falhar então nestas políticas que todos os estados andam a tomar em prol dos poucos que beneficiam delas?
Tanto o Ronaldo como o Messi bem como Mourinho ou Guardiola já o afirmaram diversas vezes: o resultado do nosso sucesso é jogar em equipa.
Assim penso que a sociedade em geral devia tirar ensinamentos destes desportos que tanto nos educaram e prepararam para a vida. O nosso objectivo para um Portugal diferente tem de ser perseguido em comum. Está na altura de acabar com o pensamento indiviualista que na sua lógica do “deixa-me é safar e o resto que se lixe” levou a enormes rombos e roubos nos dinheiros públicos.
Está na altura de jogarmos todos em colectivo para que seja a sociedade no seu conjunto a tirar benefícios e não apenas os mesmos do costume.
Comunismo é tão simples como isto: uma sociedade a trabalhar em prol de um objectivo comum.


* O autor escreve às Quartas-feiras no Blog da Associação Iniciativa Jovem

terça-feira, 10 de abril de 2012

Crónica Semanal das Terças-feiras - Daniel Veloso 10/04/2012 / "Também há vida nas redondezas"

Daniel Veloso*
 Também há vida nas redondezas

A periferia é habitualmente olhada com desprezo e hostilidade pela maioria, vislumbrada como um mar de decadência e crime, violência e virulência. Os bairros suburbanos são responsabilizados pelo desabrochar de uma panóplia de flagelos sociais, desde o tráfico à prostituição, passando pelo consumo de droga ou vandalismo. Os seus habitantes, gente pobre e precarizada, são concebidos como escumalha, invariáveis bandidos sedentos por instalar a confusão, o perigo, o terror. Gente incapaz de contribuir para o progresso social, preguiçosos irresponsáveis, inimigos do trabalho.
Estratégia antiga de um sistema ignóbil, estes preconceitos são construídos e socialmente assimilados, como que por um processo de “osmose”. Tal estratégia, montada para perpetuar o isolamento dos suburbanos, tem um objectivo central: dividir para reinar. Mas a realidade, afigurando-se como juíz hegemónico, contraria categoricamente aqueles estigmas, e os subúrbios exigem mostrar de que são feitos. Aqui também há seres pensantes, seres dinâmicos e esforçados, com muito para ensinar. O Kova M Festival, realizado durante a última semana, é disso prova irrefutável. Na Cova da Moura, um bairro “problemático” localizado às portas de Lisboa, os habitantes, unidos, ergueram um admirável evento, pleno de actividades culturais e desportivas, palco de uma irrepreensível dinâmica. Num bairro cuja população é de origem maioritariamente africana, as culturas cabo-verdiana, angolana e guineense estiveram soberbamente representadas, quer através das danças e das músicas, quer auxiliados pelo artesanato e gastronomia. Tendas montadas, convívio intenso, cachupa no prato, arrisca-se um pézinho de dança. Kuduro, kizomba e funaná correm no sangue, e vários grupos do bairro sobem ao palco, montado no ringue da bola. Grupos de incansáveis jovens, rapazes e raparigas, donos de um ritmo inalcançável e de uma incessante energia, mas também conjuntos de veteranos, incapazes de ignorar os seus genes, dançando e tocando, divertindo e apaixonando. As Batuque Finka Pé são disso exemplo: um grupo de senhoras percussionistas, que encantam também com os seus extrovertidos movimentos, com a sua inexaurível boa disposição.
Porém, a vitalidade dos suburbanos não se esgota aqui, e os moradores da Cova fizeram mais: a grande influência do Rap nos jovens do bairro, e a multiplicidade de MC’s aqui presentes, proporcionou a organização de uma série de concertos de hip-hop, todos eles gratuitos. Com uma mensagem indissociável da repressão e desigualdade de que são alvo na periferia, os MC’s vociferam palavras de ordem e hinos imortalizados, incendiando a bem composta plateia. Desde as mais recentes promessas da Cova – que já conservam o rap nas veias e artérias -, até aos mais antigos MC’s do bairro, como LBC, Cash Money Paka, Hezbollah ou Thugz, há ainda tempo para Souljah, um reconhecido grupo de Rap da Cova, afamado em todo o meio do hip-hop suburbano. Homenagens aos companheiros injustamente desaparecidos (materializadas na canção “Pa nha Rapaz”, um clássico do bairro), revolta contra a prepotência policial, solidariedade entre “tropas”, denúncia das evidentes iniquidades. Todos os temas cabem nos poemas daqueles que vivem o mais duro quotidiano. O intercâmbio musical abre ainda espaço para a passagem de Chullage ou Halloween, outros dois rappers da periferia, sempre prontos para lutar contra a segregação e a exploração.
O Kova M Festival foi território de enriquecimento cultural, território de permuta de experiências de vida, de sentimentos e opiniões, preferências e especificidades. Foi palco de uma autêntica festa popular, gratuita e acolhedora, estimulante e moralizadora. Todo o bairro participou, todo o bairro ajudou. Mas o Kova M Festival foi ainda uma lição para muitos “iluminados” que se julgam donos da verdade. Uma lição de honestidade e simplicidade, de tranquilidade e união, de fraternidade e companheirismo, de trabalho e esforço colectivo. Uma lição de vida dada pelos mais pobres. Por aqueles que, com pouco, são capazes de fazer muito. O Moinho da Juventude está de parabéns, a Cova da Moura está de parabéns. Todos, juntos, calam as repudiantes vozes que os acusam de parasitagem. Porque aqui há vida, há cultura, há reflexão, há acção. Os factos falam por si, e o mote está dado. Esqueçam-se os preconceitos. “Bem passa ku nós”. 

* Estudante de Ciências da Comunicação na FCSH-UNL. O Autor escreve pontualmente no Blog da A.I.J.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 6/04/2012

Bernardo Tomé*

Estou por casa e daqui já não saio há algum tempo. Tempo indeterminado porque vou sempre adiante e não sei a linha temporal que o conta. Tempo vazio, não o conto nem quantifico. Tempo inventado para a organização, que não preciso, porque a arrumação mental que tento fazer já não faz sentido.
        No sono da minha cama vou acordando. Demoro algum tempo a ver noticiários que me sujeitam a uma lavagem cerebral e a acreditar que o capitalismo vai prevalecer. Perco mais espaço com os olhos que avistam ali tão perto, no ecrã, anúncios que limitam o pensamento e manipulam para o consumo.
        Desço por umas escadas que me livram do barulho do mundo e já piso o chão frio que me queima os pés gelados de sono. O pijama colorido faz de conta que ainda é fim-de-semana e tranquiliza-me. Sento-me a comer. Acabo por beber mais do que a fome permite e termino no duche, a demorar as horas.
        Com a toalha a indicar que a sujidade já se fora embora de mim, indico o caminho para a rua não antes de vestir um qualquer trapo que fascina a minha alma comunista.
        Desço a escadaria do prédio e a clarabóia lá do alto promete sol e calor. Mas engano meu. O sol agrada ao meu corpo, mas o frio faz-se notar com a aragem matinal.
        Os passos são forçados a andar. No braço, ou debaixo dele, entrego a minha sorte ao Bertrand Russel. Trago em mim (porque já o lera antes) a Conquista da Felicidade e entre linhas, Nenhum Olhar do Peixoto. Pareço um literário. Não sou.
        Refugio-me do frio, no quiosque do velho e da velha. Faz frio na mesma, mas agora tenho a companhia de um senhor que todas as manhãs faz a delícia das notícias. Conta o dia de ontem e faz promessas para o amanhã. Gosto de o ouvir, gosto dos bons dias que me dá. Gosto de guardar o que ouço.
        O trabalho é perto. Não tenho de dar muitos passos até lá, mas no caminho curto eu e a vontade já nos perdemos.
        Atendo os telefones. Ligo a desconhecidos. Preparo relatórios de vendas. Brinco com canetas. Roubo madeira aos lápis. Mastigo tampas e desmonto lapiseiras. O meu emprego é fascinante na sua insignificância. Não sou feliz.
        O superior hierárquico chama o meu nome, trocado, porque nunca dei pelo nome Martim, nunca fui burguês, nunca tive posses, nunca votei outra cor que não o vermelho. Mas ainda assim, respondo à chamada. Subo o elevador a pé. São muitos os degraus, mais do que poderia contar.
        - Andas a trabalhar pouco Martim. Passas o dia na conversa, a telefonar a não sei quem, a gastar o dinheiro que eu ando a acumular, a deixar-me na penúria e um pouco menos rico. Afinal de contas, que andas a fazer?
        Baixo a cabeça e pergunto-me se não seria melhor perder as estribeiras e colocar todo o conhecimento de economia que acumulo em mim, ou até mostrar-lhe que sou um proletário, que sou um dos que Karl Marx chamou à atenção, um trabalhador honesto que chama à vida qualquer coisa como trabalho, loucura, insanidade. Fico calado. Mais uma vez não me expresso. Nunca o soube fazer.
        - Sabes que estás num sitio competitivo, que não trabalhas tu e haverá alguém a corroer a corda que te sustém. És inútil para mim porque com um dedo no gatilho coloco um rato no teu lugar. O mundo é a competição, eu sou o organizador e tu o competidor, por isso, cabe a ti o lugar em disputa. Daí ter de forçar, de te pedir, cuidadosamente, para entrares em competição ou abandonares. Não quero reclamações ou falta de esforço. Quero os melhores, prontos para tudo, prontos para ter amor à camisola. Decide. Ou corres por mim, ou corro eu contigo.
        Desisti. Com a palma da mão coloquei um adeus escrito. Sem falar, saí da sala de troféus.
        A gritaria era imensa. O sussurro dos colegas de trabalho ensurdecia os espectadores. Mas eu não parei. Continuei até à rua.
        Lá fora, a esperar por mim, estava uma revolução por fazer. Debaixo do céu baunilha estava um amor por encontrar. Entre os prédios que se abraçavam, estava um futuro enternecedor para mim. No Universo, havia agora um destino por escrever, o meu e de quem me quisesse acompanhar. No horizonte, a glória percorria os meus antepassados e tudo aquilo que ansiava.
Na finitude de mim, soube sem sequer o imaginar, que era o começo de uma nova vida.
        
*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Crónica de Francisco da Silva (Todas as Quartas-feiras) - 4/4/2012

"Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!" [1]

Foram estas as palavras que o Capitão Salgueiro Maia proferiu na madrugada de 25 de Abril de 1974 antes de rumar a Lisboa para colocar um ponto final no estado a que Portugal tinha chegado. Faz hoje 20 anos que faleceu esta referência da nossa história. Este homem foi um dos principais responsáveis por uma garantia que nós portugueses temos hoje: nenhum regime dura para sempre.
Vivemos em Portugal dias de indefinição política. Já conseguimos todos compreender que de momento somos governados pela troika e não por um qualquer governo legitimado democraticamente através de eleições. Foi eleita uma coligação que ao contrário do que se propunha não está a governar o país, mas  que apenas se limita a traduzir para português as ordens da referida troika.
Salgueiro Maia falava das várias formas de estado e bem. Aproveitemos o dia em que recordamos o vigésimo aniversário da sua morte para pensar um pouco sobre  a questão de quem governa e quais os interesses que procuram satisfazer. Abril foi construído para que a sociedade portuguesa pudesse evoluir e sair da pobreza e miséria a todos os níveis que viviam. Ganhámos serviços públicos como as escolas e os hospitais, houve uma democratização do poder político, conquistámos direitos laborais... enfim um sem número de coisas boas.
Passados 20 anos da morte de Salgueiro Maia temos um governo que se propõe a exercer políticas que no final dos 4 anos de legislatura terão revogado todas essas conquistas em nome de interesses que ainda ninguém percebeu quais são.
É um governo de pequenos Salazares, indigentes política e intelectualmente. São incompetentes na função de servir os cidadãos e sem qualquer noção do que é a causa pública. O nosso governo não é mais que um mordomo dos interesses de outros países e impões medidas que nos farão retroceder meio século, que nos vão tornar em trabalhadores baratos para servir a indústria europeia a valores competitivos com os Asiáticos. Não haja ilusões que é isto que irá acontecer... a menos que nos decidamos a seguir o exemplo do capitão de abril e aceitarmos ser voluntários para colocar um ponto final no estado a que chegámos.


Francisco da Silva


[1]    http://pt.wikipedia.org/wiki/Salgueiro_Maia

domingo, 1 de abril de 2012

Na Síria, e em todo o lado, os trabalhadores devem cerrar fileiras contra o imperialismo!

*Miguel Lopes

O exército sírio retoma o controlo de Homs e Idleb. A guerra assimétrica que o império e os seus proxies abriram na Síria não descambou em guerra civil e não permitiu a criação de uma nova 'Benghazi', que iria legitimar uma invasão em grande escala, como sucedeu na Líbia.

A invasão terrestre das forças da NATO era a única forma de se consumar a ocupação. O cenário da guerra civil, mais assente no proselitismo religioso do que nas justas reivindicações democráticas, tinha pouco espaço para vingar. A maioria sunita é secular, a sua autoridade é o Grão-Mufti Sheikh Ahmad Bader Hassoun, que exige a unidade em torno das reformas do Presidente Bashar al-Assad. As figuras sunitas que apelam à revolta, Sheikh al-Qaradawi e Sheikh Adnan al-Arour, estão ligadas a correntes salafistas (minoritárias) e à Irmandade Muçulmana.

Tal como aconteceu no Afeganistão, a estratégia do império consiste em exportar as correntes religiosas mais reaccionárias, subjugadas aos clérigos sauditas e de outras monarquias árabes ditas moderadas, colaboracionistas e traidoras à causa palestiniana. Com isto pretendem destruir os últimos focos de resistência aos seus planos para a reorganização geopolítica de todo o Médio Oriente. Nesses planos não pode existir um aliado do Irão, que faça a ponte com o Hezbollah e ainda ajude a financiá-lo, assim como financia as FPLP, a resistência iraquiana, até o Hamas (que foi fundado pela Irmandade Muçulmana e optou agora por alinhar com as monarquias traidoras) e que dê apoio logístico ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão.

O ‘Concelho Nacional Sírio’ e o ‘Exército Sírio Livre’ são o projecto do imperialismo no terreno e têm que ser eliminados sem dó nem piedade. Não existe dificuldade em identificá-los pelo lábaro que carregam. Aquela bandeirola com três estrelas e tons esverdeados simboliza o que de mais reaccionário a Síria viveu: o colonialismo francês - mais tarde o colonialismo dos nazis através do Governo de Vichy -, e a destruição da República Árabe Unida. Os patetas que vão atrás desta parafernália só não coram de vergonha porque, como está implícito, são patetas e não têm noção do ridículo.


A nova Constituição

A nova Constituição, em vigor desde 27 de Fevereiro, referendada e aprovada por 89.4% dos mais de oito milhões que foram votar, testa um pilar essencial do regime - o seu carácter secular. A Constituição continua a proibir partidos de carácter religioso, tribal, regional, ou que discriminem com base no sexo, origem ou cor da pele.

Na chefia do Estado (poder executivo): os candidatos necessitam de reunir 35 assinaturas de membros do parlamento, ter mais de 40 anos e pelo menos 10 anos de residência.

Em relação ao poder legislativo: o Ba'ath perde a hegemonia, a Frente Nacional Progressista perde a quota eleitoral. As eleições legislativas foram marcadas para o dia 7 de Maio e as eleições presidenciais serão em 2014.

Quanto ao conteúdo social: a Constituição assegura a educação pública e gratuita em todos os níveis de ensino. Não defende o mesmo para a saúde, apenas que ninguém pode ficar sem cuidados de saúde por falta de apoio do Estado. O art. 23.º estabelece a emancipação da mulher como orientação constitucional.


Os que foram comidos por parvos


A violência da guerra mediática, da mentira persistente e descarada a que fomos sujeitos durante o último ano, tanto no caso líbio como no caso sírio, foram a prova de algodão que precisávamos para isolar uma série de grupelhos "de esquerda" e "progressistas", que não souberam ou não quiseram chocar de frente contra o imperialismo. Explicar esta posição com base na ingenuidade é o melhor elogio que lhes podemos fazer.

Outros grupos persistem na insuficiência dos argumentos "não-ingerencistas" e pacifistas, que se opõem ao imperialismo sem assumir o campo que o combate. Sabem que a firmeza e a clareza das posições os transformam em vítimas do seu próprio eleitoralismo.