sexta-feira, 18 de maio de 2012

Crónicas no BLOG da A.I.J – O Amável

Bernardo Tomé *
O Amável

Quando se deu o seu nascimento, cedo se percebeu que seria diferente. Ao primeiro choro que nunca chegou a acontecer, sorriu para a parteira e seduziu-a, cativando a sua atenção não para a acção em si, mas antes para o menino que desejava agora ter sido seu. Depois de uma e duas palmadas, mudou de expressão e riu em gargalhada sonora, e assim afugentou os presságios de que poderia ter alguma deficiência. Não, era são como tudo, e respirava a saúde de um menino como os outros.

        Durante o crescimento foi igual a outras tantas crianças, na brincadeira desafiante aos adultos, na rebeldia da idade circulava por entre os carros e limpava a sujar os calções e camisolas, roubava maçãs e tudo o que encontrava à porta da mercearia do Senhor Jorge e troçava de longe mais um acto vitorioso do mais reguila de todos.

        Soube um dia aprender a ser adolescente, quando teve de ter a responsabilidade de um adulto e começou a trabalhar, na ajuda de quem precisava, naquela época a mãe, que adoecera e se transformara num vegetal de cama. Nessa época de doenças raras e desconhecidas, viu a mãe saltar de uma praça onde abundavam o peixe vendido para uma cama onde até os lençóis cheiravam a doente. E assim começou a ter que ajudar, já que o seu pai, ausente desde sempre, na lide da casa e no pagamento das contas que aumentavam de dia para dia. Mas foi a partir desse momento que mudou a sua visão de tudo.

        Já trabalhava a tempo inteiro e estudava a meio tempo. Trabalhava na oficina do Senhor Miguel, que para si e para os seus amigos tinha sido sempre o Zé Cadeado, fazendo alusão com um qualquer malandro maldoso de livros policiais. Apanhava na oficina os restos de madeira e trabalhava-os em pequenas coisas, esculpindo pequenas casinhas de madeira, para pássaros, para bonecos, para o que fosse preciso. Era chato e duro para uma criança que ainda o era no seu interior.

        A escola ficava para os intervalos do trabalho. Não havia tempo para abrir o livro, era sentar, marcar a presença, e apresentar-se. Todos os dias se apresentava à turma e à professora. Todos os primeiros dias de inicio de ano lectivo era a mesma história.

        E assim se fez homem, cedo demais é verdade, mas enquanto o rosto de menino permanecia, a barba não crescia e o sorriso do nascer não mudava, ia sendo igual a si próprio, simples e trabalhador, aventureiro e rebelde.

        No meio do trabalho, agora que já desistira da escola, arranjava sempre tempo para espalhar o seu charme pelo mulherio da terra. Dançando em bailes ao som do silencio, ou beijando e acariciando as beldades no meio da mata local. Por vezes chegava a correr distancias loucas, suando por todos os poros somente para chegar perto da rapariga que vira horas antes por esse mesmo local sorrindo para si. Era mulherengo, mas um mulherengo romântico, daqueles que não escondem o que sentem, nem mesmo o que não sentem, sempre leal e fiel. E elas gostavam dele assim.

        E foi quando corria desalmadamente ao encontro de mais uma conquista que tropeçou numa multidão de grevistas. Foi cair redondo no meio da insatisfação de muitos, e deu de caras com o que mudaria o rumo do seu pensamento intelectual. Imóvel, no chão desgastado pelos passos da tristeza, foi ajudado por um homem já de meia idade, de punhos fortes e braços musculados pelo trabalho árduo, e pegou na sua mão de aspirante a carpinteiro. Ergueu-se sorridente e percebeu rapidamente que se tratava de mais uma greve dos trabalhadores da única fábrica de calçado da terra. Ouvia gritos de revolta, e até o choro de muitos. E no meio da gritaria, ouvia as letras cantadas ao expoente máximo da loucura, P…C…P…!

        Gostou e cantou. Acompanhou também ele os cânticos e deu consigo revoltado. Tinha conversado aceleradamente com o senhor dos punhos fortes, ao que ele explicou a razão da revolta e indicou o responsável por tudo aquilo. Foi nesse dia que percebeu a luta de classes e deu como oficial a sua entrada no movimento politico. Uma entrada tímida, mas triunfante no meio dos camaradas que já eram seus comuns muito antes de tropeçar neles.

        Já era militante do Partido Comunista Português. Orgulhosamente desempenhava agora um papel como distribuidor de propaganda politica na sua terra. Sentia-se valorizado fazendo parte de um colectivo que defendia aquilo que havia defendido desde criança, o direito a ser igual, o direito a não ter fome, o direito a estudar, o direito a não estar doente, o direito a ser feliz.

        No centro de trabalho reaprendeu a ler e a escrever. Com os camaradas mais velhos folheou o Manifesto pela primeira vez, com eles descobriu Lenine e aprendeu a compreende-lo e até a desenhe-lo. Deliciou-se e projectou-se inteiramente nos Esteiros, ousando pensar que era ele o autor e não o Soeiro. Era um mundo novo que encontrava e estava feliz. Tinha até deixado a vida de encantador de mulheres. Preferindo os diálogos aos beijos, os debates às curvas, os livros aos seios.

        Mas enquanto a consciência politica estava inteiramente trabalhada e entranhada, enquanto o Marxismo-Leninismo estavam já nas veias, o amor não acontecia. Continuava a espaços a ter amor vagabundo, mas não se encantava. Nem mesmo com a senhora Madalena do busto farto que passava todos os dias em frente a oficina o fascinava mais. Sentia o vazio de não encontrar o amor verdadeiro quando via os seus camaradas a partirem para a província com os seus amores, e se sentia invejoso por não ser igual nesse campo.

        Naquele dia saiu da oficina cansado. Muita serradura tinha limpo, e muita serradura continuava nas suas unhas. Estava exausto e sem vontade sequer de ler. Saiu a arrastar os pés e a limpar os olhos de sono. E no meio de tanta coisa por fazer, sentiu o cheiro mais maravilhoso, um cheiro a flores do campo na cidade. Um cheiro de perfume de rico em corpo de pobre. Um cheiro mágico que o fez abrir o sono com os olhos e a olhar para ela. Atrapalhado e pouco convincente, sugeriu um piropo. Que não resultou. Mais solto e gingão disparou um outro. Mas também suscitou qualquer reacção. Desesperado, sem imaginar outros elogios baratos, perguntou apenas o nome da cheirosa. A resposta veio de pronto. Rosa.

        O nome era Rosa. E ele era tudo fascinação. Descobrira o tal romance que lera em Gente Pobre, e ainda para apimentar mais, sabia que Rosa era belo demais para se juntar a si.

        Andou dias assim, perdido por amores escondidos. Sem revelar, sem desvendar, sem partilhar. Guardou o sentimento para si. Até ao dia em que voltou a vê-la na rua. Nesse dia, apresentou-se, tal como fazia na escola e não soltou qualquer piropo gasto. Antes, olhou bem para os olhos da Rosa e pediu se ela lhe concedia a mão para ser sua companheira.

        As viagens a partir desse dia foram diferentes. Ia trabalhar sozinho. Mas aos comícios, aos congressos, aos almoços e jantares, e tudo o que envolvesse o partido, lá estavam, ele e a Rosa, de mão dada. Tinham descoberto dias depois do pedido, que ambos eram militantes e que tinham frequentado os mesmos lugares, e que Rosa já o tinha visto nos bailaricos, diferente dele que nunca a tinha visto senão naquele fim de tarde.

        Envelheceram em conjunto. Viram muitas vitórias do partido. Câmaras ganhas, freguesias conquistadas, votos em crescendo. Viram tudo o que lhes dava felicidade e alento crescer, o partido, os filhos, os netos, os bisnetos. E até eles próprios.

        Adormeceram juntos no dia 25 de Maio de 2020. Era um dia louco. A revolução tinha saído a rua e gritava-se bem alto que o Socialismo real vinha a caminho, e ouviam-se ao longe os jactos carregados de Capitalistas sujos, rumo a um lugar menos justo e menos fraterno. As crianças esticavam a mão para os idosos e uma esperança nova nascia. Era o inicio de tudo e muito. Era o fim para ele e para Rosa.

        Da sua varanda, viram tudo, sentados nas duas cadeiras de verga, sempre de mãos dadas. Foi assim que ficaram para a eternidade.

        Ainda hoje quando passo perto da varanda, naquela rua clássica do Dafundo, consigo ver a Rosa a acenar para o seu amado, o eterno romântico, o militante mais simples que pude um dia conhecer. O camarada Amável.

*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Crónicas no BLOG da A.I.J - Antes que seja tarde

Francisco da Silca*
Antes que seja tarde
Ontem, saiu o relatório do banco de Portugal sobre o comportamento da economia portuguesa durante o ano passado. Ficámos a saber, então, que a taxa de desemprego foi à volta dos 13%. Este ano, segundo dados da comissão europeia, Portugal já atingiu cerca de 15% de desempregados e com tendência a aumentar. Com as políticas da troika, implementadas por este governo medíocre, Portugal tem regredido bastante. Estamos a assistir a uma tentativa de investir na desqualificação dos portugueses, forçando-os a ser trabalhadores indiferenciados, por essa Europa fora.
Deixámos de investir na formação, na educação, e na cultura. Estamos a fabricar pessoas cujo único emprego que conseguirão obter, será de baixa qualificação e consequentemente, baixa remuneração.
Traduzindo, estamos a produzir mão de obra barata, a ser utilizada pelos países europeus com indústria, de modo a competirem com a produção asiática.
Esta política interessa a quem, serve os portugueses? Não elegemos nós um governo para concretizar as políticas que nos sejam benéficas?
Ao que parece não... o nosso governo limita-se a ser um capataz, que faz o trabalho sujo do seu senhor,  para que sejam depois agraciados com um emprego numa qualquer instituição europeia, quando tudo estiver em ordem.
Indo mais longe, temos um grupo de mercenários, que foram levados ao colo nas eleições, mas que assim que começou a governar, logo se percebeu ao que vinham: destruir este país.
Não falo de destruir em termos abstractos, estão a destruir o país em termos físicos concretos, com as políticas de miséria que implementam. Os portugueses em idade activa estão a voltar a emigrar, os jovens são incentivados a emigrar, os idosos não têm capacidade de pagar as despesas de saúde, as crianças estão a ficar sem tecto, pois há cada vez mais famílias a entregar as casas ao banco...

E o que diz o primeiro-ministro disto tudo? Vem dizer que os portugueses têm de ver uma oportunidade no desemprego. Uma oportunidade de emigrar, de passar fome, de não conseguir pagar as contas... ou também uma oportunidade para abrirem os olhos. Vejam em que condições estamos, à sorte a que estamos abandonados. Sintam a miséria que nos abraça, emanada das ordens da troika, via Passos e Gaspar. Cheirem a podridão dos partidos do arco de governação, entregues a todo o tipo de interesse corrupto e parasita. Ouçam os pedidos de ajuda dos Gregos, toquem a vossa consciência. Não percamos esta oportunidade, de mostrar a todos os quantos conhecemos, quem é esta gente, e o que estão a fazer ao país. Antes que seja tarde.


* O autor escreve às Quartas-feiras no Blog da Associação Iniciativa Jovem.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Crónicas no BLOG da A.I.J: O pensamento único.


Francisco da Silva*
O pensamento único

É comum os mais velhos quererem que os jovens pensem como eles.     É ainda mais comum, quando os jovens apresentam ideias que colocam em causa o sistema em que esses velhos do restelo dominam. É assim, nas sociedades, nas empresas, nos partidos... em tudo o que envolva pessoas. Tornamo-nos um pouco avessos à mudança com o avançar da idade, acomodamo-nos, e esperamos que os outros também o façam.
Aos jovens dos dias de hoje, é lançado o desafio de repensar o modelo de sociedade em que vivem. Se querem continuar nesta sociedade que promove a desigualdade, o fosso social entre ricos e pobres, ou se pretendem algo de diferente.
Ao mesmo tempo, inúmeras vozes se levantam a dizer que “só há uma alternativa”, “nem pensem nisso”, e outras frases parecidas. Claro que é preciso ouvir o que os mais velhos dizem, quanto mais não seja, para não se voltar a cometer os mesmos erros. É preciso respeitar quem tem algo para nos ensinar e ter a humildade de querer aprender com os outros. Ao mesmo tempo, é preciso não dar ouvidos a quem apenas quer que tudo fique na mesma. Aliás, é preciso combater essas vozes acomodadas e acomodantes, para que a sociedade não cristalize e pare no tempo. Para que as ideias evoluam, e com ela a sociedade, é necessário que as propostas diferentes que temos sejam postas em cima da mesa e levadas à discussão. Não serve de nada ter ideias se não as colocamos ao serviço dos outros, se não as confrontamos com as ideias das outras pessoas, de modo a conseguir aproveitar o melhor delas. Só assim, conseguimos ver erros que não havíamos visto, soluções que não nos tinham ocorrido e apoiantes para nos ajudar a implantá-las.
É preciso não ter medo de se expor nem de debater, e também é preciso saber aceitar quando não temos argumentos ou quando estamos errados. Faz tudo parte da vivência política de um cidadão activo na sua sociedade. Se querem realmente fazer a diferença arrisquem pensar fora da caixa, coloquem a imaginação e a criatividade, ao serviço das vossas ideias e dos vossos objectivos.
Não deixem que outras vozes vos calem ou falem por cima das vossas, exerçam o direito e o dever que têm como cidadãos, de querer mudar o mundo em que vivem. Mudem a vossa maneira passiva de estar na sociedade: são vocês que mandam, são vocês que definem que tipo de economia querem, que tipo de regime político e até que tipo de governantes.
Moldem a realidade um pouco à vossa imagem e não cedam à ditadura do pensamento único.

* O autor escreve às Quartas-feiras no Blog da Associação Iniciativa Jovem. 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Crónica: 1º de Maio por Francisco da Silva

Francisco da Silva*
1º de Maio

Ontem foi dia do trabalhador, dia em que se celebra a luta pelas 8 horas de trabalho, 8 horas de descanso e 8 horas de lazer.
No mesmo dia em que se celebra esta e outras conquistas a nível dos direitos laborais, o primeiro-ministro veio dizer aos portugueses que “temos de estar preparados, para vivermos pelo menos durante dois ou três anos, com níveis de desemprego a que não estávamos habituados, ele não vai desaparecer de um dia para o outro.”[1]
Por mais voltas que dê, não consigo perceber esta frase. Como é que um país se prepara para viver durante anos a fio com a única certeza que o desemprego vai continuar a subir?
Não consigo entender como é que se nega assim o futuro a milhares e milhares de pessoas promovendo a miséria? Este governo promove activamente políticas de destruição do Estado como quem faz a demolição de um edifício.
As bases deste edifício têm sido as aparentes melhorias da condição socioeconómica de muitas pessoas que se deram no período do final dos anos 80 até ao final da década de 90.
Essas mesmas pessoas, hoje, quando entregam as suas casas, reconhecem que lhes foi vendida uma ilusão. Foi o crédito que serviu para a direita comprar tempo e conquistar a opinião pública. Foi o crédito que consegui dar a ilusão que afinal era o capital quem tinha a melhor solução para a definição de uma sociedade.
Assim, as pessoas foram abandonando a ideia da classe a que pertencem, levando os trabalhadores a pensarem que eram patrões, quando atingiam o patamar da“classe média”.
Quando, de repente, o capital nos tira o tapete do crédito e ao mesmo tempo a direita tem maiorias amplas nos governos por essa Europa fora, percebemos que o nosso nível de vida é pior que o de Portugal dos anos 70.
Pior porque há 30 anos caminhava-se para uma (r)evolução social e hoje caminhamos para uma regressão rumo a um governo autoritário. Pior porque há 30 anos as famílias não estavam tão endividadas como hoje.
É preciso que os jovens prestem atenção às palavras do primeiro-ministro. Ele já disse várias vezes para emigrarmos porque com o seu governo Portugal não tem futuro. Já assumiu a sua incompetência para criar emprego e resolver os problemas do país. Ouçam as suas palavras e pensem numa alternativa porque ele próprio diz que com o governo de direita não vamos lá.
Pensem na alternativa e construam essa alternativa.
É o nosso futuro que está em jogo, não podemos esperar mais.

* O autor escreve às Quartas-feiras no Blog da Associação Iniciativa Jovem. Esta crónica refere-se ao texto da Quarta-feira passada que não pode ser publicado

[1] http://sicnoticias.sapo.pt/economia/article1522679.ece