sábado, 31 de março de 2012

Crónica Semanal de Bernardo Tomé no Blog da A.I.J - 31/03/2012 (Devia ter sido públicada ontem).

Bernardo Tomé*
"Os comunistas também se apaixonam."
       
  Os portões abriram para a esquerda: um para dentro e outro para fora. Eram todos canhotos, aqueles que, com as mãos cansadas de lutar, puxavam com contentamento a abertura de mais uma festa do Avante.
        Ao coçar a barba do nervoso que sentia sempre que entrava por aquelas terras secas, reparo mais uma vez no rosto repetido em cada camisola andante. Foi nesse gesto que foquei uma imagem diferente e refleti que era o pensador Fidel Castro quem deveria estar repetido. Naquele momento quis ver as barbas pensantes do camarada sem igual que sempre fez de mim um melhor ser humano, com as suas ideias, com os seus discursos, com a sua forma plena ao comunicar com as massas. Queria ver a sua farda verde azeitona estampada no peito daqueles que ousam sonhar com a utopia. Naquele coçar de barba, julguei que era assim que o Ernesto gostaria que fosse. Fidel. Fidel Castro.
        Olhei para os meus iguais e senti que também eles tinham a responsabilidade maior de ser comunista. Senti, no pó que vinha de cada um, que entrávamos juntos no socialismo, no nosso pequeno socialismo, porque afinal, sempre soubéramos que ali, na festa do Avante, o socialismo concretizava-se, nesses três dias que orgulhariam Marx, era possível.
        Cumprimentei os habituais, fazendo questão de os abraçar, como ordena a saudade e a fraternidade.
        Vejo em cada rosto uma familiaridade que me comove. A música ainda não a ouço, mas julgo ser Pedro Barroso quem canta, julgo que é uma guitarra que grita “…quando um povo pergunta – Como é? – alguém vai tremer…”. Pedro Barroso, barbudo como Camilo Cinfuegos, robusto como Evo Morales. Estou comovido e a mesma comoção leva-me a cumprimentar todos os camaradas que aparecem no meu campo visual.
        Dirijo-me para o Espaço Internacional, para apertar as mãos silenciosas dos camaradas norte coreanos. Como sempre, sorriem timidamente e oferecem-me tomates vermelhos. Como ao longo destes anos me habituaram, secretamente, muito secretamente, abrem um saco e mostram-me a Coca-cola fresca que degustam sempre que o calor chama mais alto. Fico um pouco no silêncio, sem que sejam preciso palavras para a nossa amizade momentânea. Fico no silêncio e olho para os quadros sem beleza mas recheados de arte, arte antiga segundo os seus antepassados.
        Ao deixar a Coreia do Norte, parto para os irmãos de Angola, esses que têm sempre uma dança para me seduzir. O suor que emanam dá-lhes o alento de três dias de fascinação e igualdade. Sinto-me confortável junto deles, chego até a mover a perna, sinal de quem não sabe dançar mas que inveja os talentosos dançarinos angolanos. Permaneço ao balcão a ouvi-los a falar, como se cantassem, como se a vida não tivesse aborrecimentos e tudo à volta fosse um mar imenso.
        Ao descer a estrada que me leva a zona de banhos improvisados, qual chafariz, qual piscina olímpica, ao descer, vejo uns lábios finos e um rosto de bronze. Esfrego os olhos e discretamente volto ao rosto, volto ao rosto comunista mais bonito que encontrei.
Pergunto aos meus iguais se está muito calor, se está o calor suficiente para ver um oásis. Não me respondem, irónicos como sempre gostei, dão a gargalhada de quem desfruta ao máximo da ingenuidade de um amigo. Sou o alvo de chacota.
Volto a olhar, sem reparar que todos caminham menos eu, todos seguem para algum lado e eu estou parado na multidão que se move para perceber a dimensão da festa. Volto a olhar e ela ainda lá está, com os lábios finos desbaratando uma beleza universal, de cabelos longos recaídos sobre os seus ombros de delicadeza. Fala com os camaradas, ouve e responde, mas eu não consigo ouvir a sua voz. Fala baixo como é próprio de quem na timidez vive.
Aproximo o meu andar para bem perto dela, perto o suficiente para ouvir a melodiosa canção que parece cantar. Percebo a letra, percebo que é poesia de Saramago com voz de Manuel Freire, sim, ouço perfeitamente: “…acendemos cigarros em fogos de napalm, e dizemos amor sem saber o que seja…”.
Quero falar com ela, mas ainda não acabou a canção, estou apaixonado, mas ainda não acabou a canção, estou enternecido, mas ainda não acabou a canção.
Ao terminar, fica um assobio cantando. Faz-me sorrir.
Quando o silêncio se apodera do momento, como se o camarada Kim da Coreia do Norte baixasse o volume repentinamente, ela volta-se para mim e olha o seu reflexo nos meus olhos. Percebe perfeitamente que eu quero falar com ela, que estou apaixonado, que estou enternecido.
Ao ver-me ali parado entre tantos, percebe tudo e deixa-me nas mãos a sua presença. Permite-me uns segundos de eternidade. Diz que não percebe e segura o cabelo empurrado pelo vento. Diz que não percebe nada e que nem o meu nome sabe. E volta-se. Volta-se para me deixar as suas costas e os seus ombros de bronze. Ao girar sobre si mesma, sacode um perfume que guardo nos lábios. E caminha para dentro da festa, para a mesma festa, para um outro local longe da loucura de quem pára o mundo para olhar. Deixa-me sozinho com as mãos cheias da sua voz.
Quando volto a conseguir andar, estão todos à minha volta a dançar, a saltar, a exaltar a grandiosidade da festa do Avante. Movem-se ao som da Carvalhesa e materializam-se os dias felizes do grande camarada Álvaro Cunhal.
Não consigo dançar ou saltar, não por falta de vontade, antes, porque ao ver tamanho contentamento, recordo-me de quem um dia se sentou ao meu lado para almoçar o almoço dos simples, lembro o Vasco Gonçalves sentado à minha direita, a tornar uma simples refeição num ato histórico, lembro que naquele almoço ao lado do camarada senti o Partido Comunista Português com a força da juventude, porque nele vi uma longa história de vida e os atos mais epopeicos e, sobretudo, uma moral de dimensões inimagináveis.
        Não dancei. Não saltei. Ouvi a Carvalhesa e não dancei.
        - Não gostas da música?
        Ao olhar para quem me falava voltei a apaixonar-me como da primeira vez. Era ela, a dos lábios finos e dos ombros de bronze. Falava comigo e eu estava mudo. Tanto para dizer, tanta poesia para dedicar e eu mudo, sem a arte que me identifica. Sabia que se fala-se gaguejaria, que não conseguiria cativá-la como a raposa, que não seria o poeta que queria ser.
        - Então, não respondes?
        Antes de sequer pensar em responder, o camarada de Angola passa nas minhas costas e sussurra ao meu ouvido funcional: - Os comunistas também se apaixonam.
        Fico sorridente. Respondo prontamente.
        - Sim, gosto imenso da música e é o único sitio onde gosto de a ouvir. Não gosto de a ouvir em casa, porque perde o encanto. Assim, espero de ano a ano para a ouvir de novo e claro, para saltar e dançar.
        - E há pouco, estavas a gozar com a minha voz? – Riu-se.
        - Não, longe disso, estava a tentar andar e a tua voz puxava-me para a ouvir, as tuas palavras fizeram algum sentido naquele momento. Mas claro que não estava a gozar.
        - Também dizes amor sem saber o que seja?
        Quando disse isto a minha cor vermelhou. Ao ouvir a pergunta poética que ela me fazia, o meu tremor voltou e o silêncio ocupou-se de mim.
        - Mas decerto que não o dizes muitas vezes?
        Respirei profundamente, tentando o retorno à calma. E respondi com a maior sinceridade de todas.
        - Não sei o que é o amor, mas falo dele, explico-o com palavras minhas. Invento histórias de amor para definir o que possa ser na sua verdade. Mas continuo sem saber o que seja. Percebo o amor como um ato de altruísmo, de compaixão pelo próximo, como uma definição de comunismo, como um princípio socialista. Mas continuo sem saber o que seja. Se me perguntares se já senti o amor, eu dir-te-ei que sim, que o sinto, agora, neste momento e há pouco, sinto amor por ti e gosto de o sentir. Mas no entanto falta-me saber o que seja. Talvez o Saramago nos explique um dia, ou talvez já tenha explicado no livro A Maior Flor do Mundo.
        Quando parei de falar, ela não disse absolutamente nada. Voltou-se de novo e vi novamente o seu cabelo empurrado pelo vento e os seus ombros de bronze. Sem perceber e sem razão, fiquei a pensar que teria eu dito de tão ridículo que pudesse ter feito com que as suas costas fossem de novo minhas vizinhas.
        Vi-a afastar-se de mim. Vi os seus passos lentos.
        Pouco depois, sem dar tempo a que eu caminhasse um metro, voltou. Trazia um papel, um pequeno papel que abri depois. Beijou-me o rosto e despediu-se sem razão.
        Ao abrir o papel dobrado escolhi olhar a letra e ver os contornos de tinta que ela tinha deixado. Só depois vi os escritos em forma de letras, só depois entendi o que dizia. A letra era trabalhada ao detalhe e o seu conteúdo não era menos importante:

“Eu sei o que é o amor.”
        
*Professor primário. O autor escreve às Sextas-feiras no Blog da A.I.J

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