sexta-feira, 16 de março de 2012

1º CRÓNICA NO BLOG DA A.I.J - 16/03/2012

A luta e o tempo - 
Bernardo Tomé*


O tempo passa devagar sempre que o tentamos determinar. Ele está sempre pautado numa cadência de segundos e minutos que os ponteiros esfregam. E nós ainda assim contamos, paramos de contar, voltamos a contar. Ele sempre a fazer-se ao futuro. Alguns de nós presos nos momentos que ele deixou para trás. Alguns de nós ansiosos que ele nos carregue para um presente que deixa sempre de o ser na imaginação dos loucos.
Passou-se algum tempo desde que vi aquele rapaz a falar para a televisão. Era o tempo em que para mim não existia política. E no entanto, na voz daquele menino-criança, a política tinha a força dos lutadores ingremes.
Ele falava como um adulto, como um homem que carregou baldes de sabedoria, como um senhor que se fez velho antes mesmo de ser infantil. Ele não temia as objetivas e as perguntas destemidas dos jornalistas. Implicava com o sistema e atrás de si uma escola inteira de rebeldia e vontade.
Era uma manhã de névoa e a escola parecia uma prisão de criminosos sem armas. Crimes em rapazes e raparigas, suspeitos de guardarem dentro a intelectualidade, a arrogância de saberem mais do que deviam saber. A escola eram cadeados mil, a trancarem o lugar de estudo, a prisão das crianças livres.
O rapaz opinava com a certeza toda de Marx. Olhos rasgados, com ares de Genghis Khan. Forma pesada no corpo e uma voz rouca de gritos noturnos. Mas uma vontade, uma veracidade, uma convicção acima da pressão vigorosa dos adultos professores. Um menino-criança que já conhecia a literatura clássica, as palavras russas. Dureza no discurso.
Os ponteiros do meu tempo lembram-se perfeitamente desse rapaz.
Ele cresceu. Tenho a certeza que ele cresceu. A ordem natural das coisas ordenou que o tamanho das suas pernas fosse outro, que o corpo ganhasse outras formas, mais leves. Mas a voz igual. Os olhos com ares de Genghis Khan iguais. O jeito de menino-criança igual. A forma em metamorfose mas a convicção e a verdade coladas à sua voz rouca, sempre rouca.
O rapaz cresceu.
O tempo nunca é novo ou velho demais. É sempre tempo. Tempo. Ele altera o mundo, mas permanece sempre igual. É tempo, pronto.
Hoje é de manhã. Está uma névoa como naquele dia em que o rapaz galvanizou uma guerrilha de jovens, em que o protagonista de uma escola inteira de velhos saberes se entregou a uma luta, talvez a primeira de muitas, rumo a um lugar mais justo, mais bonito. Hoje é hoje e o tempo não formatou as ideias do rapaz que se fez homem nas ideias mais profundas do ser humano.
Hoje o rapaz é um homem da história.

Eu estou um pouco mais velho e recebi um convite do rapaz para iniciar uma jornada de crónicas que não faço a mínima ideia de como fazê-las funcionar. Esta é a primeira crónica que escrevo e só tenho a certeza que este é o meu perdão por não ter estado naquela manhã de névoa, junto às tropas que se reuniram para mudar o rumo de uma escola que se perdia nas malhas dos adultos-aranhas. Esta é a primeira crónica que escrevo e estou convicto de que o rapaz saberá o que fazer com as minhas palavras.

Ao Luís Baptista.

*Professor Primário (escreve as Sextas-feiras).

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