O Amável
Quando se deu o seu nascimento, cedo se
percebeu que seria diferente. Ao primeiro choro que nunca chegou a acontecer,
sorriu para a parteira e seduziu-a, cativando a sua atenção não para a acção em
si, mas antes para o menino que desejava agora ter sido seu. Depois de uma e
duas palmadas, mudou de expressão e riu em gargalhada sonora, e assim afugentou
os presságios de que poderia ter alguma deficiência. Não, era são como tudo, e
respirava a saúde de um menino como os outros.
Durante o crescimento foi igual a outras tantas crianças, na
brincadeira desafiante aos adultos, na rebeldia da idade circulava por entre os
carros e limpava a sujar os calções e camisolas, roubava maçãs e tudo o que
encontrava à porta da mercearia do Senhor Jorge e troçava de longe mais um acto
vitorioso do mais reguila de todos.
Soube um dia aprender a ser adolescente, quando teve de ter a
responsabilidade de um adulto e começou a trabalhar, na ajuda de quem
precisava, naquela época a mãe, que adoecera e se transformara num vegetal de
cama. Nessa época de doenças raras e desconhecidas, viu a mãe saltar de uma
praça onde abundavam o peixe vendido para uma cama onde até os lençóis
cheiravam a doente. E assim começou a ter que ajudar, já que o seu pai, ausente
desde sempre, na lide da casa e no pagamento das contas que aumentavam de dia
para dia. Mas foi a partir desse momento que mudou a sua visão de tudo.
Já trabalhava a tempo inteiro e estudava a meio tempo.
Trabalhava na oficina do Senhor Miguel, que para si e para os seus amigos tinha
sido sempre o Zé Cadeado, fazendo alusão com um qualquer malandro maldoso de
livros policiais. Apanhava na oficina os restos de madeira e trabalhava-os em
pequenas coisas, esculpindo pequenas casinhas de madeira, para pássaros, para
bonecos, para o que fosse preciso. Era chato e duro para uma criança que ainda
o era no seu interior.
A escola ficava para os intervalos do trabalho. Não havia
tempo para abrir o livro, era sentar, marcar a presença, e apresentar-se. Todos
os dias se apresentava à turma e à professora. Todos os primeiros dias de
inicio de ano lectivo era a mesma história.
E assim se fez homem, cedo demais é verdade, mas enquanto o
rosto de menino permanecia, a barba não crescia e o sorriso do nascer não
mudava, ia sendo igual a si próprio, simples e trabalhador, aventureiro e
rebelde.
No meio do trabalho, agora que já desistira da escola,
arranjava sempre tempo para espalhar o seu charme pelo mulherio da terra.
Dançando em bailes ao som do silencio, ou beijando e acariciando as beldades no
meio da mata local. Por vezes chegava a correr distancias loucas, suando por
todos os poros somente para chegar perto da rapariga que vira horas antes por
esse mesmo local sorrindo para si. Era mulherengo, mas um mulherengo romântico,
daqueles que não escondem o que sentem, nem mesmo o que não sentem, sempre leal
e fiel. E elas gostavam dele assim.
E foi quando corria desalmadamente ao encontro de mais uma
conquista que tropeçou numa multidão de grevistas. Foi cair redondo no meio da
insatisfação de muitos, e deu de caras com o que mudaria o rumo do seu
pensamento intelectual. Imóvel, no chão desgastado pelos passos da tristeza,
foi ajudado por um homem já de meia idade, de punhos fortes e braços musculados
pelo trabalho árduo, e pegou na sua mão de aspirante a carpinteiro. Ergueu-se
sorridente e percebeu rapidamente que se tratava de mais uma greve dos
trabalhadores da única fábrica de calçado da terra. Ouvia gritos de revolta, e
até o choro de muitos. E no meio da gritaria, ouvia as letras cantadas ao expoente
máximo da loucura, P…C…P…!
Gostou e cantou. Acompanhou também ele os cânticos e deu
consigo revoltado. Tinha conversado aceleradamente com o senhor dos punhos
fortes, ao que ele explicou a razão da revolta e indicou o responsável por tudo
aquilo. Foi nesse dia que percebeu a luta de classes e deu como oficial a sua
entrada no movimento politico. Uma entrada tímida, mas triunfante no meio dos
camaradas que já eram seus comuns muito antes de tropeçar neles.
Já era militante do Partido Comunista Português.
Orgulhosamente desempenhava agora um papel como distribuidor de propaganda
politica na sua terra. Sentia-se valorizado fazendo parte de um colectivo que
defendia aquilo que havia defendido desde criança, o direito a ser igual, o
direito a não ter fome, o direito a estudar, o direito a não estar doente, o
direito a ser feliz.
No centro de trabalho reaprendeu a ler e a escrever. Com os
camaradas mais velhos folheou o Manifesto pela primeira vez, com eles descobriu
Lenine e aprendeu a compreende-lo e até a desenhe-lo. Deliciou-se e
projectou-se inteiramente nos Esteiros, ousando pensar que era ele o autor e
não o Soeiro. Era um mundo novo que encontrava e estava feliz. Tinha até
deixado a vida de encantador de mulheres. Preferindo os diálogos aos beijos, os
debates às curvas, os livros aos seios.
Mas enquanto a consciência politica estava inteiramente
trabalhada e entranhada, enquanto o Marxismo-Leninismo estavam já nas veias, o
amor não acontecia. Continuava a espaços a ter amor vagabundo, mas não se encantava.
Nem mesmo com a senhora Madalena do busto farto que passava todos os dias em
frente a oficina o fascinava mais. Sentia o vazio de não encontrar o amor
verdadeiro quando via os seus camaradas a partirem para a província com os seus
amores, e se sentia invejoso por não ser igual nesse campo.
Naquele dia saiu da oficina cansado. Muita serradura tinha
limpo, e muita serradura continuava nas suas unhas. Estava exausto e sem
vontade sequer de ler. Saiu a arrastar os pés e a limpar os olhos de sono. E no
meio de tanta coisa por fazer, sentiu o cheiro mais maravilhoso, um cheiro a
flores do campo na cidade. Um cheiro de perfume de rico em corpo de pobre. Um
cheiro mágico que o fez abrir o sono com os olhos e a olhar para ela.
Atrapalhado e pouco convincente, sugeriu um piropo. Que não resultou. Mais
solto e gingão disparou um outro. Mas também suscitou qualquer reacção.
Desesperado, sem imaginar outros elogios baratos, perguntou apenas o nome da
cheirosa. A resposta veio de pronto. Rosa.
O nome era Rosa. E ele era tudo fascinação. Descobrira o tal
romance que lera em Gente Pobre, e ainda para apimentar mais, sabia que Rosa
era belo demais para se juntar a si.
Andou dias assim, perdido por amores escondidos. Sem revelar,
sem desvendar, sem partilhar. Guardou o sentimento para si. Até ao dia em que
voltou a vê-la na rua. Nesse dia, apresentou-se, tal como fazia na escola e não
soltou qualquer piropo gasto. Antes, olhou bem para os olhos da Rosa e pediu se
ela lhe concedia a mão para ser sua companheira.
As viagens a partir desse dia foram diferentes. Ia trabalhar
sozinho. Mas aos comícios, aos congressos, aos almoços e jantares, e tudo o que
envolvesse o partido, lá estavam, ele e a Rosa, de mão dada. Tinham descoberto
dias depois do pedido, que ambos eram militantes e que tinham frequentado os
mesmos lugares, e que Rosa já o tinha visto nos bailaricos, diferente dele que
nunca a tinha visto senão naquele fim de tarde.
Envelheceram em conjunto. Viram muitas vitórias do partido.
Câmaras ganhas, freguesias conquistadas, votos em crescendo. Viram tudo o que
lhes dava felicidade e alento crescer, o partido, os filhos, os netos, os
bisnetos. E até eles próprios.
Adormeceram juntos no dia 25 de Maio de 2020. Era um dia
louco. A revolução tinha saído a rua e gritava-se bem alto que o Socialismo
real vinha a caminho, e ouviam-se ao longe os jactos carregados de Capitalistas
sujos, rumo a um lugar menos justo e menos fraterno. As crianças esticavam a
mão para os idosos e uma esperança nova nascia. Era o inicio de tudo e muito.
Era o fim para ele e para Rosa.
Da sua varanda, viram tudo, sentados nas duas cadeiras de
verga, sempre de mãos dadas. Foi assim que ficaram para a eternidade.
Ainda hoje quando passo perto da varanda, naquela rua
clássica do Dafundo, consigo ver a Rosa a acenar para o seu amado, o eterno
romântico, o militante mais simples que pude um dia conhecer. O camarada Amável.
Sem comentários:
Enviar um comentário